sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Wilmar Silva e Francesco Napoli - Neo Não (2010)

Em NEONÃO, o expectador é constantemente provocado a sair da clássica posição de “leitor confortavelmente entrincheirado atrás de suas mesas e cadeiras”, para construir, também a partir de suas próprias leituras, através de suas próprias referências, de suas vivências particulares, a percepção de que existe uma poética que não se traduz apenas por palavras de dado idioma, que independe de interpretações objetivas ou cartesianas do discurso linguístico que um poema poderia ou, segundo alguns, “deveria” encerrar.

A “poesia sonora”, embora há muito não seja exatamente uma novidade, tem suas raízes, ainda conforme Philadelpho Menezes, fixadas na “poesia fonética das vanguardas futuristas e dadaístas do início do século.” (MENEZES)

Mas não são apenas alguns ecos das vanguardas do início do século passado que podem ser percebidos em neonão. É fragrante sua aproximação, seu diálogo, com outros trabalhos de “poesia sonora” que tiveram, entre seus criadores e representantes mais significativos, nomes como Kurt Scwitters e Jaap Blonk. Aqui no Brasil, atualmente, vale destacar neste sentido os trabalhos de Márcio-André, Marcelo Sahea, Ricardo Aleixo, entre outros.

A primeira faixa de NEONÃO, “EE TU MAO”, demonstra o tom que permeia grande parte do trabalho: o esvaziamento do sentido semântico da palavra, uma desconstrução do léxico até sua transformação em pequenas unidades fonéticas fraturadas, fragmentadas. Tudo complementado pela melodia e pelo ritmo que, juntos, reconstroem significados alinhavados junto às palavras, então despidas de sua habitual carga de plurissignificações previamente codificadas.
“caracter”, cujo ritmo lembra o barulho cadenciado das linhas de montagem, deixa nas entrelinhas uma crítica não exatamente a pop-art em si, mas à pasteurização que foram submetidos certos segmentos da arte pós-moderna.

“atlas”, com um arranjo que parece misturar Bach e berimbau, nos atenta para o caráter de intertextualidade presente em NEONÃO. Intertextualidade que é levada a termo na medida em que tanto os elementos humanos, orgânicos, junto aos elementos eletrônicos, tecnológicos, dialogam entre si o tempo todo, construindo a si mesmo e ao outro, numa relação simbiótica. É o discurso poético agindo sobre a melodia da voz e do instrumento e vice-versa. Interação intertextual instantânea.

A coloquialidade, assim como na poesia contemporânea de maneira geral, está presente em NEONÃO. Mas, neste último, a coloquialidade não se faz presente apenas pelo uso de expressões tomadas ao léxico diário, cotidiano, e sim a alusão à situações que constroem o lócus de alguns poemas, como em “réquiem” ou “céu dos olhos”. Silviano Santigo, a propósito da coloquialidade em relação a literatura produzida no Brasil a partir de 1964 escreveu: “[...] prefere se insinuar como rachaduras em concreto, com voz baixa e divertida, em tom menor e coloquial” (SANTIAGO, 2002).

Conforme já mencionado anteriormente, a poética de neonão, do ponto de vista de execução, não traz nenhuma novidade que já não tenha sido devidamente investigada pelos movimentos de vanguarda. Todavia, tanto nos primórdios do “dada” como no contexto pós-moderno artístico atual, essa “poesia sonora”, ou conforme a própria definição de Wilmar Silva e Francesco Napoli, “poesia biossonora”, para fazer sentido enquanto manifestação artística, literária, necessita de algo mais que o suporte oferecido pelos livros.

À “poesia sonora” ou “biossonora” é necessário o elemento humano funcionando nem sempre como ser vivo racional, mas como um canal, uma via capaz de gerar sonoridade e sentido através da melodia dos instrumentos e do próprio idioma, na voz do intérprete. Além do mais, uma mera junção dos elementos acima enumerados, por si só, não poderia validar tal tarefa como artística ou poética. Ao ler os poemas no encarte e escutar o CD, ou ter a oportunidade de presenciar a performance da dupla ao vivo, fica a certeza de que a interpretação, a performance do trabalho é um dos pilares da “poesia biossonora”.

E tal performance só faz sentido, plenamente, quando executada ao vivo, para um coletivo de pessoas. Nisso, o conjunto de poemas em NEONÃO perde para uma performance ao vivo dos mesmos poemas. Não há dúvida de que o registro em CD é válido, mas se a proposta é fazer “poesia biossonora”, nada mais coerente que essa poética só possa ser apreciada em sua plenitude quando presenciada ao vivo.

Na faixa “iiii” (sim, é esse o título do poema!) que soa como um híbrido de mantra hindu e guitarras pós-punk-pinkfloydianas fantasmagóricas, há quase uma relação de simbiose entre os elementos do poema, em que cada uma das partes só sobrevive, só faz sentido, junto às outras. Ocidente e oriente entrelaçados. Tal simbiose fica ainda mais evidente e apreciável em “outono”, que traz uma melodia que também evoca ares orientais.

“Anu”, aqui presente sob a forma de um excerto do longo poema de Wilmar, ganha ritmo e melodia hipnóticos. A poesia de NEONÃO, para melhor ser apreciada, requer, exige a presença, enquanto performers, de seus criadores para ser apreciada plenamente.

O flerte com a etnopoesia, visível em alguns dos trabalhos de Wilmar Silva que também estão representados no CD, também dá as caras em NEONÃO através do “poemeto ecológico para a amazônia”, referência, reverência, homenagem aos índios, sistematicamente erradicados desde a chegada dos colonizadores portugueses em terras brasileiras, e a “chico mendes”, mártir da causa da floresta amazônica.

Enfim, pode ser dito que NEONÃO, de Wilmar Silva e Francesco Napoli, representa um passo interessante em busca de uma poesia, de um pensar e fazer poéticos que não se prendam exclusivamente aos limites impostos pelo branco da página, mas que consigam construir significados independentemente do sistema léxico em que são executados. É uma caminhada rumo a essência da poesia, forma de arte intrínseca à humanidade.
por Leonardo Morais

Preço – R$20,00

Faixas:
01 – EE Tu Mão – Wilmar Silva
02 – Caracter – Wilmar Silva
03 – Réquiem – Wilmar Silva
04 – Atlas – Wilmar Silva
05 – Eu Te Blue – Wilmar Silva
06 – Céu dos Olhos – Wilmar Silva
07 – White – Wilmar Silva
08 – iiii – Wilmar Silva
09 – Estuário – Wilmar Silva
10 – Outono – Francesco Napoli
11 – Anu – Wilmar Silva
12 – Saudade Dada – Fernando Pessoa
13 – Chaparral – Wilmar Silva
14 – Poemeto Ecológico Para a Amazônia – Luiz Edmundo Alves
15 – Íris Retinas – Wilmar Silva
16 – X – Wilmar Silva
17 – Atilho – Wilmar Silva

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