segunda-feira, 28 de outubro de 2013

César Lacerda – Porquê da Voz (2013)

Nascido em Diamantina, há 26 anos, César Lacerda pertence a uma geração brasileira de infância marcada pelo pop e adolescência alumbrada pelo fenômeno híbrido Los Hermanos. Por outro lado, se a canção límpida de Caetano Veloso é seu norte, a Música como musa maiúscula é DNA e bolsa-família do filho da pianista Maria Eunice Ribeiro, ex-diretora do conservatório de sua cidade natal. “Quando nasci, ela se aposentou e abriu uma escola de música. Não tive babá, ficava lá dentro direto”, lembra o cantor, compositor e multi-instrumentista.

Ele estudou piano, violão, bateria, violino e aprofundou-se no bacharelado em flauta transversal, mas faz questão de observar: “o primeiro instrumento é a voz mesmo”.  Entre o Débussy e o Chopin tocados pela mãe e as modas de viola escutadas pelo pai na vitrola, o menino se mudou com a família para Belo Horizonte aos 11 anos, onde rolou a contaminação pela indústria fonográfica. “Lembro dos primeiros CDs que tivemos: Mamonas Assassinas, o Samba Poconé (Skank), o primeiro das Spice Girls e o primeiro do Gerasamba (logo transformado em É o Tchan).”

Na adolescência, a influência clássica continuou, também a partir do irmão mais velho - Sergio Rodrigo Lacerda, que se tornou compositor de música erudita contemporânea -, junto com o rock progressivo de Genesis e Yes. E também a gregariedade tipicamente mineira, exercida no grupo (cLAP!) - em que tocava bateria, piano e flauta, além de cantar – e em trabalhos associados a Luiza Brina, Luiz Gabriel Lopes (da banda-coletivo Graveola e o Lixo Polifônico), Gustavito e Flavio Henrique, entre outros nomes da cena de BH.

Um pouco de tudo isso pode ser ouvido neste álbum de estreia saudavelmente ambicioso e múltiplo, sem medo de abraçar caminhos raros para a canção popular brasileira. Há seis anos e meio morando no Rio de Janeiro, o jovem mineiro montou uma belíssima banda com o fluminense Elísio Freitas (guitarra e produção musical, fã transparente de John Zorn), o pernambucano Marcelo Conti (baixo) e o baiano Cláudio Lima (bateria), todos contribuindo nos arranjos. A eles se somam dois grandes nomes: Lenine, que ouviu o trabalho de César a partir do filho Bruno Giorgi (produtor auxiliar do disco) e se animou a dividir os vocais da bela “A Dois”, e Marcos Suzano, que empresta sua fina arte percussiva a nada menos que dez das doze faixas (em “A Dois”, com pandeiro e talking drums).

O título Porquê da Voz, mais que uma canção de delicada construção – o arranjo de cordas de Sérgio Rodrigo Lacerda faz toda a diferença -, apresenta a carta de intenções de César. Afinadíssimo e dono de belo timbre, ele reivindica para si sem medo coisas que, infelizmente, tem se tornado pouco frequentes na MPB deste milênio: “por ser cantor, trago todo o desejo na voz”, “por ser cantor/ meu desejo é estar por aí (...) sou a geração, o complexo, o coração”. O vibrafone de Milena Lacerda acentua o lirismo da segunda faixa, “Qualquer Pensamento Específico”, e “Manawê” avança na diversidade rítmica com guitarra africana e um rap/repente do pernambucano Carlos Posada.

O romantismo com alto potencial radiofônico  – ou de “música de novela”, como brinca o próprio César, observando a viola caipira afeita a tramas rurais – marca “Bem Mais”,  e, em outro viés, mais sofisticado, “Parece”, que conta com dois talentos convidados, também cantautores: Alexandre Andrés na flauta e Juliana Perdigão em clarone e clarineta, no arranjo de Leonardo Perantoni.  A complexidade estrutural  também não torna menos atraente uma canção épica como “Herói”, com César aos violões (o de cordas de aço e o de náilon) e a parceira Luiza Brina tocando patangome, instrumento percussivo de congada, em rico diálogo com a bateria de Cláudio Lima e as intervenções de Suzano em caxixi, moringa e triângulo.

“Jonas”, com leve sabor prog anos 70, feita em homenagem ao mestre “sambeiro” do Reciclo Geral, de Belo Horizonte, é outro exercício de rigor, com arranjo de sopros de Elísio Freitas. Em “Simone de Santarém”, com letra de Luiz Gabriel Lopes sobre uma prostituta paranaense radicada em Portugal, César singra melodias difíceis com trechos explicitamente mouriscos.  Já em “Tudo Incerto”, composta por ele após audição do primeiro disco de Reginaldo Rossi, da fase Jovem Guarda, a viagem de simplicidade harmônica deixa espaço para Elísio soltar os bichos à guitarra.

Um dos destaques do repertório é a superacessível e pop “Namorin”, parceria com Luiza Brina e Brisa Marques que se aproxima de um abolerado hermânico, mas com um viés ultrairônico no ponto de vista feminino antiternurinha. “Eu prefiro um canalha assumido a um meio marido”, profere a letra, de extração aldirblanquiana, diante de um amante cheio de “carin’” e “beijin’”. O fecho brilhante, caetaneado em sua apropriação do axé e do samba-reggae - com entrada triunfal do berimbau de Marcos Suzano -, é fruto de colaboração com a artista performática paraibana Numa Ciro. “Talvez/ o amor encontre  o seu lugar/ E a solidão/ simples delícia esperta/ Enquanto for contraponto/ Tom sobre meu cantar/ inevitável João”, canta a voz de César, manhosamente justificada, por um lado, pela tal linha evolutiva, e do outro, pela vocação popular.
Pedro Só / Agosto 2013

Preço – R$25,00

Faixas:
01 – Porquê da Voz – César Lacerda
02 – Qualquer Pensamento Específico – César Lacerda e Brisa Marques
03 – Manawê – César Lacerda
04 – A Dois – César Lacerda
05 – Bem Mais – César Lacerda
06 – Namorin’ – César Lacerda, Luiza Brina e Brisa Marques
07 – Herói – César Lacerda
08 – Parece – César Lacerda
09 – Jonas – César Lacerda e Brisa Marques
10 – Simone de Santarém – César Lacerda e Luiz Gabriel Lopes
11 – Tudo Incerto – César Lacerda
12 – Favos de Solidão – César Lacerda e Numa Ciro


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